Escrito por Lemos Walmrath - Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e membro dos núcleos de pesquisa Desenvolvimento, Trabalho e Ambiente (DTA), sediado na UFRJ, e do Brazilian Research in Auto Industry (BRAIN), sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Agradeço o convite e o apoio de Lucas Afonso do Amaral durante a viagem e pesquisa de campo na ABX24
No que se refere à indústria automotiva brasileira, poucos eventos ilustram melhor o cenário atual do que o Automotive Business Experience (ABX). Como descrito em seu site oficial, a proposta do evento é clara: “Todos os debates relevantes para o futuro do segmento estão ou, até mesmo, nascem no Automotive Business Experience. O marco zero para profissionais que precisam definir estratégias para garantir protagonismo aos seus negócios, empresas e soluções”. O encontro anual, promovido pelo veículo de jornalismo especializado de mesmo nome, já ocorre há alguns anos e reúne as principais montadoras, fornecedores e demais atores do setor.
Assim como no ano anterior, o evento aconteceu no São Paulo Expo, na zona sul da capital
paulista. O amplo espaço foi utilizado para exposição de produtos, serviços e realização de palestras. Havia sete palcos simultâneos, além de áreas anexas, com uma variada agenda de debates, abordando temas desde eletromobilidade até o agronegócio. O evento, realizado em 30 de setembro de 2024, também foi projetado para fomentar negócios B2B e promover o matchmaking entre startups, fornecedores e montadoras, buscando soluções e parcerias.
Embora o foco inicial parecesse ser a inteligência artificial e seu impacto na indústria, o debate que mais chamou atenção foi o da eletromobilidade. Afinal, este foi um dos primeiros grandes eventos após a sanção da lei que instituiu o programa Mobilidade Verde e Inovação (MOVER) pelo governo federal. Em outras palavras, foi uma das primeiras e mais abrangentes oportunidades de encontro entre os principais players do mercado nacional, agora sob um novo marco de política pública industrial que incentiva a eletrificação, especialmente em torno dos veículos híbridos flex.
Havia muito para ver, ouvir e experienciar no ABX24. Destaco alguns pontos. Logo no hall de
entrada, os participantes se deparavam com o banner do evento, que destacava detalhes importantes, como os patrocinadores. No ano passado, a Great Wall Motors (GWM) foi patrocinadora master; neste ano, sua compatriota chinesa Build Your Dreams (BYD) assumiu essa posição. Em ambos os anos, uma presença constante: a Stellantis, líder destacada no mercado nacional, controladora de marcas como Fiat, Jeep, RAM, Peugeot e Citroën. As empresas, protagonistas dos principais debates sobre os rumos
da política industrial automotiva, compartilharam não só a cota master, mas também um espaço VIP entre os estandes, logo na entrada. Outras montadoras tradicionais, como General Motors (GM) e Volkswagen (VW), também marcaram presença, ainda que com menos destaque.
Mais ao fundo do pavilhão, após os estandes das montadoras, havia muitos outros,
especialmente de empresas de autopeças, nacionais e internacionais, além de startups. O destaque era a ampla oferta de eletropostos de recarga rápida e soluções adaptadas para residências e edifícios, ponto crucial para expandir a infraestrutura do mercado eletrificado. Caminhões e ônibus também tiveram espaço, como o estande da Volvo, com seu Globetrotter 100% movido a biodiesel, e o da Mercedes- Benz, que atua como parceira da SPTrans na expansão da frota de ônibus elétricos em São Paulo.
No entanto, nem todas as empresas presentes seguiram o business as usual de eletrificar o
mercado com novos veículos. A startup catarinense Swap-e, especializada em retrofit, exibiu um simpático Chevrolet Celta dos anos 2000, convertido para elétrico com motor nacional WEG e baterias importadas da China. O carro, com autonomia de 120 km e recarga completa em apenas duas horas, prometia desempenho semelhante ao convencional, oferecendo uma alternativa mais econômica e ambientalmente amigável. A empresa aposta em recuperar veículos existentes, contrariando a lógica tradicional de renovação da frota com carros 0 km, destacando que essa opção seria mais barata e menos prejudicial ao meio ambiente.
Nos debates, também havia muito a se ver e digerir. Em uma mesa voltada para o aprendizado com a transição para os eletrificados na Europa, composta por representantes de consultorias do setor, o parecer era de que não havia luta entre as distintas tecnologias de propulsão, muito embora o custo para o consumidor final fosse central, assim como a perspectiva de o país se ver como importador dependente de veículos eletrificados, o que justificaria soluções nacionais, como os híbridos-flex. Já em uma mesa específica sobre o MOVER, o tom era de elogio à previsibilidade, mas com cobranças quanto à regulamentação efetiva do programa. A continuidade espiritual dos antigos programas Inovar Auto e Rota 2030 era, na visão de João Irineu Medeiros, da Stellantis, bem-vinda, na medida em que as
montadoras passaram a incorporar e oferecer gradualmente mais tecnologias, o que também aconteceria com os powertrains eletrificados, sempre levando em conta o critério de affordability (i.e., acessibilidade, em termos de custos). Com nome sugestivo dos tempos modernos, a mesa “Carro híbrido-flex é o novo básico do Brasil?” reforçava o alinhamento pró-descarbonização, e não necessariamente pró-eletrificação, apesar das reiteradas falas em prol de “neutralidade” ou “multiplicidade tecnológica”.
Na mesa final, que encerrava o evento e refletia sobre o atual ciclo recorde de investimentos da indústria (R$ 120 bi), a GWM ansiava iniciar a produção nacional, enquanto a Stellantis reiterava o antigo pleito de tornar o país competitivo o suficiente para começar a exportar, posição em parte ecoada pelo CEO da GM, para o qual a indústria nacional tinha muito a contribuir para ativar o real potencial do mercado automotivo sul-americano. O representante da Toyota pregava fé no Brasil e compromisso de longo prazo. O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), por sua vez, enfatizava o recente estudo da entidade, que subsidiava com argumentos o caso em prol do etanol.
A leitura e diagnóstico pró-híbridos e etanol, contudo, não pareciam ser tão unânimes. Em
entrevista informal com representante da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), cuja presença institucional não estava contemplada oficialmente no evento, um panorama sombrio e quase depressivo se manifestava. Em linhas gerais, o interlocutor revelou descrença com a aposta no etanol, criticando iniciativas diversas, desde o governo estadual paulista até o federal. Havia ironia acerca das metodologias que indicam a contribuição do etanol: em tempos de seca generalizada e queimadas nacionais no verão fora de época, a captura de carbono pelas plantações e o manejo do solo deveriam ser melhor escrutinados para computar o real impacto da poluição dos veículos abastecidos por esse combustível. Em sua leitura, o governo federal, ao não se desvincular do forte lobby do agronegócio e ao contemplar a multiplicidade de rotas, colaborava para agravar a destruição ambiental nacional, colocando em risco o futuro da economia e da indústria nacional. O rápido avanço e a magnitude das mudanças climáticas exigiriam muito mais ação, sendo a indústria e o setor de transportes chave. “Quantos ABX teremos nos próximos anos nesse ritmo?”, indagava.
E, como se não houvesse muito conteúdo do lado de dentro do pavilhão, a área externa do
evento contava ainda com test drives de veículos selecionados de algumas das montadoras
patrocinadoras: BYD, Stellantis e veículos premium de Volvo e BMW, por exemplo, eram revezados numa pequena pista de testes para demonstrar as novidades do mercado. Aqui, certamente, a BYD chamava atenção, sendo disputada pelos curiosos. O sedã híbrido plug-in King, além da grande picape Shark, atraíam olhares e filas. A Stellantis oferecia seus Peugeot e a picape Fiat Titano, todos convencionais flex-fuel. A Toyota, por sua vez, trouxe o Corolla Cross, pioneiro, junto com seu irmão sedã de mesmo nome, na eletrificação da frota nacional com híbridos leves, também flex. As disputas em torno das rotas tecnológicas mais adequadas ao país também ecoavam neste espaço, ainda que de modo muito sutil. Dentro do Corolla Cross havia dois importantes avisos, na forma de papel: o condutor faria o teste em um veículo híbrido flex, “tecnologia 100% nacional”, e abastecido com etanol, denotando a escolha de rota tecnológica da Toyota, endossada e compartilhada por Stellantis e VW.
Como diz o ditado, para bom entendedor, às vezes uma folha de papel A4 basta.
Em suma, o ABX24 se mostrou, por mais um ano, como um importante evento-termômetro do estado atual da indústria automotiva brasileira. Como destaque, o já mencionado "consenso" em torno da posição única do Brasil, na qual os híbridos-flex figuram como a saída mais adequada. De fato, apesar de arestas a serem aparadas e pontos de interrogação a serem eliminados, tanto firmas incumbentes quanto desafiantes parecem mais ou menos satisfeitas, ao menos no curto prazo: enquanto Stellantis, GM, VW e Toyota se movimentam para manter a forte presença nacional, entrantes como BYD e GWM estão bem próximas de iniciar a fabricação nacional, deixando para trás o status de meras importadoras.
O que eventos como este revelam, ao fim e ao cabo, é como a economia, a esfera da produção e os mercados são construídos continuamente. Lidos sociologicamente, esses processos evidenciam que são em encontros desse tipo que agentes, instituições e organizações criam, mantêm e desenvolvem relações socioeconômicas, usando seus recursos diversos para pautar politicamente o estado atual de coisas e os rumos dos setores e indústrias. Em jogo estão as escolhas, enraizadas socialmente e situadas historicamente, que pautarão os arranjos que, ao fim e ao cabo, ditarão os rumos da mobilidade e, em parte, dos esforços nacionais no combate às mudanças climáticas. Na selva de pedra corporativa,
gigantes conciliam caminhos técnico-econômicos, enquanto o país anseia por um futuro mais verde.
コメント